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"Úrsula" (Maria Firmina dos Reis)

Primeira leitura concluída em meu Kindle, ouvi falar de Úrsula pela primeira vez no final do ano passado através do Instagram da Companhia das Letras. Na página do livro no site da editora, lê-se: 
Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula é um dos primeiros romances de autoria feminina escritos no Brasil. Maria Firmina dos Reis, mulher negra nascida no Maranhão, constrói uma narrativa ultrarromântica para falar das mazelas sociais decorrentes da escravidão.
Fiquei super interessada, desde antes do lançamento, não apenas pela premissa da autoria feminina, que é um dos focos de minha pesquisa de doutorado, mas pela autora ser uma mulher negra escrevendo em pleno regime escravocrata no Brasil (a primeira publicação do romance foi em 1859, quase trinta anos antes da abolição). Ano passado li três romances que trouxeram de maneira bastante contundente a questão da mulher negra na sociedade* e a perspectiva de uma negra escrevendo romances em um período em que sua raça e seu gênero sofriam opressões ainda piores que as atuais me deixaram muito curiosa. No entanto, a leitura deixou um leve gostinho de decepção e incômodo em mim.

Falarei primeiro sobre o incômodo: Maria Firmina dos Reis era uma mulher negra e nordestina. Úrsula é uma heroína branca de cabelos e olhos negros nos mais clichês moldes românticos. Há personagens mulheres e negras, mas que têm um espaço muito limitado na narrativa: a mãe do negro Túlio, que é apenas citada, e a negra Susana, que sofre enormes martírios por causa da sua sinházinha. Acredito que seja algo a se estudar mesmo academicamente, se ninguém ainda o fez: por que a opção por uma heroína branca: tentativa de se adequar à "escola" literária, imposição da época para que o romance fosse aceito, ou uma naturalização da figura da mulher branca como heroína de romances que acabou internalizada pela autora? Uma leitura mais aprofundada poderia trazer indícios de que criar uma heroína tão diferente de si causara incômodo na própria Maria Firmina? Digo isso porque, estudando Jane Austen, através do texto e da ironia usada pela autora é possível detectar diversas críticas à sociedade que passaram batidas aos leitores da época. É algo a se pensar e eu gostaria MUITO de ouvir opiniões de outros leitores e mesmo de estudiosos dessa obra. Baixei um volume no Kindle que traz outras histórias da autora e, quando as ler, tentarei estender essa reflexão em outros textos, se for possível.

Quanto à decepção: eu esperava um baita romance abolicionista ou, pelo menos, um conflito causado por uma paixão interracial, alguma coisa do tipo. O que encontrei foi uma história estilo José de Alencar muito mais água com açúcar - quem me conhece, sabe que eu detesto o Alencar e, apesar de respeitar "Senhora", acho os livros dele uns porres de ler. Não estou falando que sejam ruins, apenas que eu não gosto. Muitos clichês ultrarromânticos, o tipo de leitura que eu tenho que forçar até chegar no final. Bom, vamos falar da história: herói branco sofre um acidente em seu cavalo e é resgatado por um escravo negro, que o leva para a casa de suas donas, uma viúva doente e sua jovem filha que vive para cuidar da mãe. A heroína Úrsula se esforça para atender às necessidades de mais um paciente e, nesse ínterim, se apaixona pelo herói Tancredo, que delira quanto a um amor do passado e a deixa inquieta porque - óbvio - ela já estava apaixonada por ele. Quando Tancredo melhora, ele compra a liberdade - após muitos discursos abolicionistas eloquentes - de seu salvador e agora melhor amigo, Túlio, e revela a Úrsula a desventura de seu primeiro amor, que agora estava superado porque ele estava apaixonado pela heroína. Tancredo pede a mão de Úrsula para sua mãe, Luísa B., que lhe conta as desventuras -  sim, são muitas desventuras! - de seu casamento e do rompimento com o irmão e lhe pede que proteja sua filha na iminência de sua morte. 
Tancredo parte com Túlio para resolver uma pendência e promete retornar em breve para se casar com sua amada. Nesse meio tempo, em meio a suspiros de amor, Úrsula é surpreendida por seu tio, o comendador Fernando de P., que se apaixona pela menina e promete que ela será sua. A partir daí, se você já não achava suficientemente melodramático, o negócio piora: é a luta contra o tempo entre os últimos suspiros de Luísa B., o retorno de Tancredo e as chances de Úrsula cair nas mãos do vilão Fernando de P. É mais dramático do que Romeu e Julieta, juro! 

Em alguns pontos, o romance me deixou confusa: quando Luísa B. conta sua trágica história a Tancredo, tive a impressão de que houve uma alusão a um possível parentesco entre ele e Úrsula. Além disso, em um trecho se diz que a tragédia de Luísa B. - o casamento com um homem que seu irmão desprezava - se iniciou há doze anos (o que seria bizarríssimo, porque daí Úrsula seria uma criança mesmo para os padrões da época, acredito); mais para a frente, parece que Úrsula era mais velha, por volta de seus dezoito anos. As linhas temporais das histórias que se contam dentro da história principal me pareceram muito contraditórias. Pode ser, também, que essa confusão tenha ocorrido porque foi um romance lido em apenas uma tarde, durante uma viagem de ônibus, e não uma leitura tão atenta. Se alguém leu e quiser comentar por aqui, me esclarecer essas questões, saiba que fico grata desde já. No mais, achei um livro mais ou menos... a extrema opressão feminina é escancarada em todas as mulheres: a mãe de Tancredo, Luísa B., a negra Susana (sequestrada na África e afastada de sua família, é a narrativa mais rica e interessante do romance), Úrsula e, no meu ponto de vista, até mesmo em Adelaide, pintada como vilã pelo herói. Em termos de gênero, gostei bastante das discussões que desperta, mas o fato de trazer uma heroína branca clichê é algo que não me desceu, mesmo. Mais uma vez, quem quiser conversar comigo sobre o romance, comente aí embaixo! 


* Pretendo falar mais profundamente - dentro das minhas limitações de mulher branca - sobre eles por aqui no futuro: "The Underground Railroad" (Colson Whitehead), "Eu sei por que o pássaro canta na gaiola" (Maya Angelou) e "Kindred" (Octavia E. Butler).

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